Homenagem
Desafio caixa de lápis de cor
Ela queria morangos vermelhos, com certeza, ela adorava os pequenos frutos adocicados, e ele ia levar-lhos arranjados, dispostos numa bonita taça, enfeitá-los-ia com uma chiffonade de manjericão, fina como fios de cabelo, e ela ia adorar.
Tendo pegado na embalagem com morangos - tão vibrantes, tão bonitos! - dirigiu-se à caixa para efetuar o pagamento. Continuou a repetir para si que ela ia ficar tão contente quando os visse, num tabuleiro com o individual de algodão, as bolinhas numa cor tão viva a combinar com os frutos, e sentiu um quentinho a espalhar-se no peito quando imaginou o seu sorriso e o brilho nos seus olhos. Ela pegaria num morango e segurá-lo-ia entre o indicador e o polegar - optava sempre por deixar o garfo, adorava comer com as mãos quando podia - e levá-lo ia à boca. O morango contrastaria com a alvura dos seus dentes e quando o trincasse o suco tentaria escorrer pelo lábio inferior. Ela riria e limparia a gota cor de sangue com o dedo, lambendo-o em seguida.
Declinou o saco - vai precisar de saco?, com um sorriso mecânico, chapa quatro, tão diferente do sorriso dela que lhe acendia estrelas nos olhos - abandonando a mercearia com a caixinha nas mãos. Ela não concordava com o uso e abuso dos sacos em plástico para transporte de compras. Um dia explicara-lhe que aqueles ecológicos que se vendiam em todos os hipermercados advinham da reciclagem de garrafas plásticas. Na altura duvidou, já que ela se estava a basear na informação dada por uma cadeia inglesa, mas ela tinha argumentado que não fazia sentido que cá a "receita" fosse diferente. Aceitara com reservas e com pouco interesse. Agora, no entanto procurava as suas palavras na memória, sôfrego da sua voz, das suas opiniões.
Entrou em casa e pousou o correio e o telemóvel na mesa e as chaves no vide poche que ali se encontrava desde sempre. A casa estava fria e silenciosa e um arrepio percorreu-o, silencioso e rápido. Afastou a sombra, rapidamente, e avançou para a cozinha. Colocou os morangos num passador de rede e fez a água correr sobre este, agitando-o. Ela estaria talvez na banheira, lá em cima. Sempre adorou banhos de imersão, pensou sorrindo - e de repente ocorreu-lhe que poderia ter comprado uma garrafa de espumante, usaria alguns morangos e levar-lhe-ia um mimosa de morango - ela agradeceria-lhe com um brilho maroto nos olhos... e as comissuras dos seus lábios levantaram-se com outras recordações invocadas... o calor da sua pele, as gotas de agua que escorriam do seu cabelo, o abraço infinito, o encaixe perfeito dos seus corpos...
Hoje faltara-lhe o beijo ao entrar em casa, o salto gracioso que faria do sofá onde estivera a pintar as unhas dos pés, o verniz esquecido na mesa de centro. Teria corrido para ele como tantas vezes e tê-lo-ia enlaçado num abraço próximo enquanto os seus lábios se tocavam. Afastou um pensamento cinzento que pairava sobre si, e pensou nela lá em cima no seu banho demorado, espuma até às orelhas, como dizia, talvez uma ou duas velas acesas, a música a tocar convidando ao relaxamento total.
Ouviu a campainha tocar mas omitiu o seu chamado, ocupando-se dos morangos. Deitou-os numa tigela, pegou na faca e começou a retirar o pedúnculo, passando-os para uma outra taça, mais pequena, onde os foi dispondo em pirâmide. Ocupado a tarefa de forma quase meditativa apercebeu-se que quem batia à porta insistia, mas não lhe apeteceu abrir. Manteve-se naquele espaço, praticando uma espécie de atenção plena.
Empilhou as folhas de manjericão, e enrolou-as cuidadosamente em seguida, apertando-as.Pegou na faca e cortou o rolinho em fatias muito fininhas. Espremeu umas gotas de limão por cima dos morangos - o limão ia tão bem com o morango, um casamento celestial, pensou. Não era por acaso que as limonadas de morango - que ele insistia serem com não de, ao que ela respondia com uma das suas gargalhadas cristalinas, verdadeira musica o som do seu riso - tinham sido as primeiras limonadas de outra fruta que não apenas o morango a vingarem na sua preferência.
Tinha começado a polvilhar os morangos com a chiffonade quando ouviu a chave rodar na fechadura da porta, e adivinhou quem era antes de se voltar. Quando ouviu a voz da irmã a chamar o seu nome gritou na cozinha! sem se voltar. Ouviu os saltos desta no corredor numa cadência acelerada que denunciava a sua ansiedade. Quando se virou com a tigela na mão, a irmã dirigia-se para ele, pálida, com uma questão a bailar-lhe no olhar aflito.
Sentiu que algo estava errado, e tinha a certeza de que sabia o que era, mas não queria pensar nisso agora, tinha de levar os morangos lá acima, antes dela sair do banho, fazer-lhe a surpresa que tinha estado a preparar com tanto carinho. Quando lho disse, a irmã deixou escapar um soluço sofrido, e ele pensou que o som que lhe escapou parecia o de um gato bebé a miar baixinho. Agarrou-lhe no braço Francisco tu não estás bem Francisco, e ele sacudiu-o, tinha mesmo de entregar os morangos, tinha mesmo... a irmã abraçou-o e por cima do ombro desta viu o cunhado que entrava com ar sofrido então, cunhado... e de repente a verdade atingiu-o.
O quarto estava escuro, e só se ouviam os aparelhos que garantiam que tudo se passava como era suposto, e todos os seus órgãos cumpriam a sua função. Encontrava-se sentado ao lado da cama segurando a mão dela nas nas suas, quando os alarmes começaram a tocar numa cacofonia assustadora. Foi então que entraram enfermeiros seguidos do médico, e ele foi levado para fora do quarto. Não sabia quanto tempo tinha passado, se trinta segundos, trinta minutos ou trinta horas, mas quando o médico saiu e se dirigiu a ele, ouviu o lamento muito da praxe e quase deitou o homem ao chão entrando intempestivamente no quarto. Ela estava no mesmo lugar e ele acreditou que o médico estava enganado, que era tudo mentira... puxou da cadeira e voltou a pegar-lhe na mão. Acabou por chamar o enfermeiro e pediu-lhe um cobertor extra, a mulher estaria certamente com frio... este colocara-lhe a mão no ombro e dissera-lhe que tinham de a levar. E foi a conter as lágrimas que deixou o hospital, antes que a irmã tivesse tido tempo de chegar.
Pelo caminho convenceu-se de que nada tinha acontecido, e fora à mercearia comprar os morangos. De repente sentiu-se exausto e a realidade agigantou-se engolindo-o num trago. A tigela bateu no chão e ele desfaleceu sendo prontamente seguro pelo cunhado. O pranto desatou-se e soluços convulsivos agitaram-no, as mãos contorcendo-se numa angustia sem paralelo.
E no chão ao seu lado estavam os cacos da tigela, os morangos espalhados no chão, naquela que fora a última homenagem aquela que foi o amor da sua vida.
- Também deste desafio:
Neste desafio participo eu, a Marquesa a Concha, a A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, a Cristina Aveiro, a bii yue, José da Xã e o João-Afonso Machado.
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)