Casara de branco com toda a simbologia inerente. Eram brancos os lençóis de algodão, com cabeção e fronhas bordadas com o seu novo monograma, agulha empunhada com esmero, para que o homem que a tinha escolhido e fora falar com o seu pai das suas boas intenções - casamento e sustento garantido, sem grandes luxos, mas o parco rendimento certinho - não se arrependesse da escolha que fizera.
Assustava-a a perspetiva da noite, daquela, a primeira noite, e envergonhada aproximara-se da mãe e perguntara o que esperar. A mãe, desconfortável, continuara a lavar a loiça com energia renovada na força com que usava o esfregão, e dissera-lhe que os homens tinham certas necessidades e que fazia parte das suas obrigações enquanto sua mulher, satisfazê-las. Disse-lhe tens de lhe dizer que sim! Mas a quê, mãe? Ao que ele te disser. Agora vai dar a lavagem aos porcos, que já deviam ter comido, rai' da rapariga, sempre com a cabeça no ar...
E chegou o dia. Depois dos votos repetidos em ladainha em frente ao senhor padre, depois do almoço que o pai da noiva fez questão de oferecer, um porco inteirinho regado ao vinho que já o seu avô fazia, depois de receber os olhares de inveja das solteiras casadoiras e o olhar sombrio das outras, das casadas com os homens que já bem bebidos as mandavam calar com gestos agressivos - mulheres que quando a olhavam sorriam um sorriso que não lhes chegava aos olhos e repetiam, enquanto lhe apertavam as mãos, o casamento é uma carta fechada, frase que já tinia nos seus ouvidos das tantas vezes que escutara ao longo do dia - depois de se sentir tão cansada, de lhe doerem os pés dos sapatos que a mãe tinha guardado do próprio casamento, e que apertavam os seus, maiores, depois de ouvir os homens a gargalhar, a cantarem canções das quais já nem conseguia entender a letra, o seu Manel aproximou-se dela, acompanhado pelo coro dos outros homens a darem vivas e a encorajarem o homem, pegou-lhe na mão e levou-a com ele a montarem na carroça que os ia levar à sua nova casa, e partiram.
Na manhã seguinte, a marca de sangue no branco do lençol que alindara com tanto brio e cuidado, confirmou a dor que sentia, e confundiu-lhe os sentimentos, as ideias, porquê a nudez, porquê o peso sobre ela, porquê a dor, porquê o sangue, ninguém lhe falara do sangue... apressou-se a retirar o lençol da cama e a levá-lo para lavar, para esfregar bem, pôr à cora, o que fosse necessário para tirar aquela mancha, a mancha da vergonha da sua ignorância, do pudor devastado, da raiva que sentia agora...
Entrou na cozinha com o lençol entronchado nos braços, e ouviu a porta abrir-se, era ele que entrava, cravou os olhos no chão, e a lembrança da noite anterior fê la tremer. Sentiu-o aproximar-se e os pés colados ao chão não a deixavam fugir nem desaparecer, e o ar que não lhe queria sair do peito, o sufoco...
Manel segurou-lhe o queixo entre o polegar e o indicador e levantou-lhe a cabeça, até os olhares se cruzarem. Desculpa, disse-lhe com os olhos tristes. Desculpa que sei que fui desajeitado, que sei que te magoei, só posso ter magoado, grande besta, tinha bebido, sabes, não me medi... desculpa, e estendeu-lhe um molho de flores silvestres apanhadas ali no campo à volta da casa. Nunca mais, disse-lhe nunca mais te magoo, quero fazer-te feliz, tão feliz quanto conseguires ser, foi por isso que quis casar contigo, entendes? Não para seres minha pertença, minha criada, mas para estares ao meu lado e caminharmos juntos.
Sofia ouviu a sua avó em silêncio, dentro do seu vestido branco de princesa, e deixou as lágrimas rolarem. A avó aproximou-se e secou-lhas com a ponta do lenço de cambraia, shh, rapariga, não chores, hoje é o dia mais feliz da tua vida! Acredita: eu não sabia, mas foi o meu... agora deixa-me ir, que todos nos esperam... amanha-te rapariga, põe-te ainda mais linda!
E a velha senhora saiu, apoiada na sua bengala, aproximou-se da cadeira onde Manel estava sentado e ocupou a do lado. O marido pegou-lhe na mão e levou-as aos lábios. Ela sorriu e ficaram assim, de mão dada durante toda a cerimónia, na certeza da promessa cumprida há tantos anos atrás.
NOTA: este texto é uma republicação, foi publicado pela primeira vez em outubro de 2018, no âmbito de um desafio de escrita criativa. E foi dele que me lembrei quando equacionei criar este, porque gostei tanto da história que criara que o tinha bem presente. Achei que hoje, dia em que acaba este desafio dos lápis de cor, ao usar este conto seria um pouco como fechar o circulo - não que queira fechar o que quer que seja, mas pronto... peço, então, desculpa a quem o tiver já lido, mas para mim faz todo o sentido colocá lo aqui.
- Também deste desafio:
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O menino de sua mãe
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Conforto
Neste desafio participei eu, a Olga, a Marquesa a Concha, a A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, a Cristina Aveiro, a bii yue, José da Xã e o João-Afonso Machado, formando o
#GrupoDosLápisDeCor
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas cada um de nós publicou, no seu blogue, um texto inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Podes lê-los através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor".