Forçou a chave, que cedeu ao finalmente rodar na fechadura. A porta rangeu queixando-se de todos os anos que permanecera fechada, e do interior uma vaga de pó misturado com um persistente cheiro a bafio, a velho e fechado embateu no seu corpo, levando-a a tossicar, uma tosse seca e irritativa. Deu um passou em frente e olhou em volta: a luz que vinha do exterior iluminava os quatro degraus de pinho que se erguiam em frente, e os três que desciam para a cozinha, à sua direita.
Subiu, entrou na sala, puxou os cortinados com cuidado, para controlar a poeira, abriu as janelas de par em par, abeirou-se do peitoril e respirou fundo. Os pinheiros erguiam-se, imensos e imponentes, e ela sentiu-se invadida por todo aquele verde que a tranquilizava. Rodou nos calcanhares e olhou a sala: estava exatamente como a deixara, há tantos anos. Aproximando-se da poltrona, removeu o lençol que a tapava e sentou-se, encostando a cabeça no espaldar.
Suspirou e fechou os olhos. Aquela casa trazia-lhe à lembrança tempos muito felizes da sua infância, antes do mundo se partir em pedacinhos pequeninos que tentou colar, debalde, por forma a não ter de recomeçar, que se reconhecer, de descobrir quem era de fato. Mas o estrago fora demasiado, e era impossível voltar a montar as peças do puzzle em que a vida se transformara, sem aviso. Pousou os olhos nas mãos que repousavam no seu colo, e num repente levantou-se e percorreu os restantes quartos, abrindo janelas, removendo teias de aranha com as mãos nuas: queria luz, ar puro, queria limpar as camadas de incertezas que se amontoavam, ligar um aspirador, passar nos móveis, no chão, fazer novo.
Na manhã seguinte começaria bem cedo, limparia tudo até aos cantos mais escondidos, depois escolheria as poucas coisas que queria manter e deixaria que levassem tudo o mais - de resto quase tudo.
Com plena consciência de que as recordações e as memórias não se apagam nem se escondem, mas se encaram e superam, depois da casa bem lavada e limpa, estenderia um colchão no chão do quarto, colocaria uma luz ao lado, e recomeçaria, iniciando a busca pelo que realmente fazia sentido ter dentro.
Da casa, e de si mesma.
- Para referência, este texto foi inspirado no quadro abaixo:
A presistência da memória, de Salvador Dali.
Todas as quartas feiras eu e a Ana D., a Ana de Deus, a Ana Mestre, a bii yue, a Célia, a Charneca Em Flor, a Cristina Aveiro, a Imsilva, o João-Afonso Machado, o José da Xã, a Luísa De Sousa, a Maria, a Maria Araújo, a Mia, a Olga, a Peixe Frito, a Sam ao Luar, e SetePartidas publicamos um texto relativo ao quadro da semana, que é apresentado todas as sextas de manhã.
Se se quiser juntar a nós, esteja à vontade, diga apenas que o vai fazer!
(o desafio termina na última semana de novembro )