Conforto
Desafio dos lápis de cor, #1 azul marinho
Nunca gostara que olhassem para ela. Fotos para documentos eram um suplicio, queria desesperadamente misturar-se com o neutro pano de fundo. Ficava sempre com cara de poucos amigos, sem sombra de sorriso, e mesmo não sendo uma pessoa de gargalhada facil, quem a conhecia de perto - mesmo perto! - via-a sorrir e rir apenas de quando em vez. E se poucas vezes o fazia, cicatrizes que a vida lhe deixara impediam-na de sentir uma maior alegria.
Começara talvez antes, mas recordava que a primeira vez que sentiu o chão a fugir, fora quando o surto de meningite lhe levara os gémeos, com poucas horas de intervalo. A partir desse momento a vida que conhecia acabou. Passou a viver para a filha mais velha, a quem deu tudo o que podia dar, não importando quão grande os sacrifício. O resultado não poderia ter sido pior, e se teve a felicidade de acompanhar o crescimento dos netos, fê-lo com um peso imenso no peito face ao comportamento violento e incoerente da filha. Manteve-se por perto co-habitando com esta na esperança de, de alguma forma, proteger as crianças... mas debalde, o máximo que pudera fazer foi chorar com estas face às ações da mãe.
O tempo passou alternando entre o veneno destilado e o fel vertido, que repetia a si própria não poder ser real, mesmo quando viu a neta sair de casa expulsa numa veneta enlouquecida, apenas porque sim.
E depois foi a sua vez de encontrar uma qualquer desculpa e fazer o mesmo, incapaz de continuar a privar com a bolha de ódio em que a filha vivia.
Afastou as recordações com um gesto de cabeça que o dia não era para tristezas. Passou as mãos na saia para alisar uma ruga imaginária, mãos com 84 anos de rugas e manchas mas ainda tanta força, e aproximou-se da neta. A seu lado, olhou-a com enlevo: vestida de branco era a imagem da felicidade. Enxotou com a mão a imagem de lágrimas a escorrerem naquele rosto, e concentrou-se no brilho dos seus olhos.
A rapariga colocou o braço sobre os ombros do seu vestido azul escuro com carinho, e quando o fotografo lhe disse "olhe para a sua neta, avó", virou o rosto, encarado-a. E naquele momento as comissuras dos seus lábios ergueram-se num sorriso que lhe colocou estrelas no olhar.
E então sentiu que, afinal, tinha valido a pena.
Neste desafio participo eu, a Concha, a A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor, a Gorduchita, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, a Cristina Aveiro, e a bii yue.
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)