Fim
O dia que escolhi para morrer amanheceu com um sol tímido a espreitar por entre as nuvens. Saltei da cama, fui diretamente para a casa de banho e enfiei-me debaixo do duche morno. Enrolei a toalha felpuda à volta do meu corpo, e olhei-me no espelho, o cabelo a pingar, as gotas de água a escorrer pelos ombros, pelos braços. Deixei-me estar assim uns momentos, a formar duas pequenas poças de agua no chão, mesmo por debaixo das minhas mãos. Acordei daquele torpor para onde tinha deslizado, embrulhei o cabelo numa toalha, e tratei da pele: hidratei, apliquei o fond de teint e o iluminador, finalizei com o pó. Espalhei um pouco de blush no alto das bochechas e nas pálpebras superiores, e apliquei uma camada de máscara nas pestanas. Sequei o cabelo, voltei para o quarto e olhei a cama desfeita, marcas da última noite que escolhi passar contigo, pistas em que se adivinhava a forma do teu corpo no colchão. Vesti o vestido, preto e clássico, pequei nos sapatos e levei-os na mão até à cozinha onde preparavas o pequeno almoço.
Sorri quando entrei, mal vi a mesa alta posta, dois individuais e no centro um pequeno molho de flores frescas dentro da minha jarra favorita. Atravessei a cozinha a saltitar e abracei as tuas costas, encostando o rosto na tua pele. Inspirei o teu cheiro, que guardei na gaveta da memória.
Comemos com a cumplicidade de dois amantes que perpetuam a paixão da noite nas pequenas coisas de todos os dias. Os sorrisos e as palavras meio sussurradas, a felicidade que transpirava e se abria como uma rosa aveludada dentro do peito.
Enfiei os pés nos sapatos, peguei na carteira, onde coloquei o telemóvel, e peguei nas chaves do carro. Saímos, cada um no seu carro, demorei mais um pouco, vi-te manobrar e acenaste-me em despedida, um até logo que não se iria concretizar. Quis gravar tudo na memória, cada momento, cada imagem.
Limpei a lágrima que se assomava, e pus o carro em movimento. Fiz o caminho até ao trabalho em piloto automático, estacionei, passei o cartão na entrada e dirigi-me ao meu gabinete. Aceitei o café que a secretária me ofereceu, e tirei a pasta da gaveta enquanto o bebericava. Abri-a e espalhei as folhas, fotos do meu corpo por dentro, a preto e branco e a cores, contraste de tanto que não devia ser, nem estar, sobre coisa nenhuma. Recostei-me na cadeira e fechei os olhos. Respire fundo, tirei o maço de envelopes da gaveta,chamei a secretária e indiquei que estes deviam ser entregues por estafeta nos endereços referidos, precisamente às 12:30h. Quando saiu, deixei-me estar, olhos fechados com força. Apertei os maxilares até os dentes rangerem, entre a raiva e a impotência, enquanto voltei a ouvir as palavras do medico, um mês, dois no máximo. Lamento...como se ele soubesse o quanto lamentar.
Olho o relógio e passam poucos minutos do meio dia. Batem-me na vidraça, empurram a porta,vens almoçar? Não, tenho umas coisas para adiantar, respondo no estupor do nada que faço e pareço, ali sentada as folhas espalhadas à minha frente. relembro cada momento que gravei na memoria enquanto me dirijo à porta e dou a volta à chave. procuro o batom vermelho na carteira e com ele escrevo um DESCULPEM, em letras enormes transversal a meia dúzia de folhas de papel que, espero, completem a razão que apresento nas cartas que estão prestes a ser entregues.
Abro a janela imensa, e sento-me no parapeito. Não noto a agitação que se começa a formar no outro lado da parede de vidro. Olho o abismo e penso em tudo o que amo tanto, e despeço-me mentalmente de cada um desses pormenores. Apoio a ponta de um pé no calcanhar oposto e deixo cair o sapato, repetindo o gesto no outro: sempre gostara de estar descalça. Fecho os olhos, aperto os maxilares com força, para evitar o chocalhar dos dentes. E deixa-me cair no vazio, sem ouvir já os batimentos frenéticos na porta do seu gabinete.
#desafiodeescritacriativa