Narciso
Desafio caixa de lápis de cor
Entrei no carro e apertei o cinto. Acendi as luzes, liguei a ignição e fiz-me ao caminho. A noite estava silenciosa e sentia-me o único na estrada, pesava-me a solidão. Passei por alto as estações de rádio, uma após outra, buscando algo que me fizesse companhia e só encontrei música. Cansado de procurar, deixei o habitáculo encher-se com melancolia.
Fazes-me falta. Não sei quando me apercebi disso mas a verdade é que me fazes falta, e tenho de ser honesto comigo. Todo o tempo que estiveste ao meu lado e que desperdicei enfunado no meu orgulho, no bem que me fazias sentir jovem e desejado, sedutor e irresistível e olhava-te sem te ver, encantado por me ver refletido no teu olhar apaixonado, mal reparando nos teus olhos. Era eu. Por mim te desdobravas em carinhos e mimos que me deleitavam. Tenho agora consciência de que nunca retribuí, não como merecias. Aceitei tudo o que me destes como se fora meu por direito.
Abro o pisca e mudo de faixa. Vejo o teu rosto quando te aproximavas e te encaixavas no meu abraço, o melhor abraço do mundo, dizias. Os teus olhos azuis tão claros e transparentes que via sem querer ver o amor que espelhavam. Suspiro. Como é que não tinha consciência de que abraçar-te era como chegar a casa? Como não reparava que nesse momento éramos duas peças que constituíam um mesmo objeto?
A viatura atrás de mim buzina, o sinal passou a verde e ainda não saí do lugar. Avanço. Sinto os teus lábios nos meus. Inspiro e tento recordar o teu perfume, a suavidade dos teus cabelos que percorria com os dedos. E por momentos é como se estivesses ao meu lado, mais uma vez.
Acabo de entrar numa pequena vila, casinhas baixas com as luzes acesas. Permito-me imaginar casais como nós nunca chegámos a ser sentados no mesmo sofá, quiçá enroscados, a assistir algo na tv.
Aparentemente o confinamento deu-te espaço para te aperceberes do quão desequilibrada estava a balança. Eu, por meu turno, comecei a sentir o teu afastamento como uma pequena dor que se fazia sentir quando algo te trazia à minha memória... não sei quando esse algo se tornou quase permanente, e a dor deixou de ser assim tão pequena. No entanto, nada te disse, talvez ancorado no meu narcisismo, com a certeza de que, ultrapassados os momentos que nos mantinham afastados, te voltaria a sentir nos meus braços e poderia enfim contar-te tudo o que não te dissera antes.
Reduzo a velocidade, retardando a chegada ao meu destino. Um arrepio percorre-me e aumento a temperatura do ar condicionado. Debalde, o frio que me tolhe vem de dentro. E volto a ver-me ali, sem necessidade de máscaras e distancias, bastava estender o braço para te tocar. Algo nos teus olhos desencorajou o gesto, e percebi que te perdi. Nem escutei quando o disseste em palavras que terás escolhido para não me magoar o ego. Tinha perdido o comboio das emoções.
Preparo-me para aceder ao espaço onde deixarei o automóvel. Cheguei finalmente ao local onde vou passar o fim de semana. Sozinho.
Faço o check in, entro no quarto e dirijo-me ao espelho onde perscruto o meu rosto, linha por linha. Mais uma vez interrogo-me sobre que viste neste rosto cansado e gasto. Eu fiquei com o meu orgulho, a minha posição, e tu com a tua alegria e gaiatice, esse teu riso e olhar travesso que agora recordo e é como se se quebrasse algo cá dentro.
Face à inevitabilidade do teu não regresso, olho-me nos olhos e oiço-me dizer:
- Tarde demais meu velho. A vida pode dar segundas chances, mas não desta vez.
- Também deste desafio:
Neste desafio participo eu, a Marquesa a Concha, a A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, a Cristina Aveiro, a bii yue, José da Xã e o João-Afonso Machado.
Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)