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Porque Eu Posso 2.0

... e 'mái nada!

Porque Eu Posso 2.0

... e 'mái nada!

Desafio caixa de lápis de cor, semana #3 preto

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O fumo negro erguia-se em espirais, naquela noite sem vento, seguindo para além do que os seus olhos abarcavam, numa dança infinita de sombras.

 

Deixou-se ficar sentado debaixo da única árvore, a uma distancia mais que segura desde que as labaredas começaram a devorar o casebre, até o fumo se extinguir. Levantou-se sem pressa, e tomou o caminho de casa devagar, pontapeando as pedras que encontrava no caminho, distraidamente, perdido nos seus pensamentos.

 

Houvera sido o seu domínio, ali fora "rei do seu castelo". Descobrira a casinha abandonada um dia, quando regressava da escola e dera um passeio pelos campos contíguos à casa da família. Espreitara pelas vidraças, e pouco divisara, tamanha era a sujidade que os embaciava. Movido pela curiosidade, aproximara-se da porta e esta cedera sem resistência. Lá dentro, em meio a pó e teias de areia, deparara-se com uma velha cama de ferro sobre a qual se encontrava uma enxerga carcomida pelo tempo. Uma mesa de madeira tosca e três cepos de madeira usados como bancos faziam adivinhar que um dia alguém usara aquela casa para viver. Chegado a casa, excitado coma descoberta, metralhou os pais com perguntas sobre a mesma. O pai explicou que fora, em tempos, um alojamento para quem fazia trabalhos sazonais na terra, e que houveram mais como aquela casa, mas que tinham sido destruídas pelo passar do tempo. Só aquela, vá-se lá saber porquê, teimara em manter-se de pé. O pequeno pediu, implorou que o deixassem usar o espaço como seu, um "forte" onde faria os trabalhos de casa, onde guardaria os tesouros que encontrava pelos campos e pinhais, e forçando a sorte, um local onde passar as noites mais quentes de verão... após uma inspeção aos alicerces, não fora alguma derrocada se fazer antever, a mãe limpou tudo como bem sabia fazer, e o pai colocou um colchão novo sobre a armação de metal da cama pintada agora de um branco brilhante. Lençóis, uma colcha de retalhos, almofada, pratos copos e talheres, e a casinha era sua. Decidiu fazer sozinho prateleiras que o pai  ajudou a colocar nas paredes, e estava pronto o seu retiro, o seu orgulho de rapaz crescido. 

 

Sempre que voltava da escola, ia a casa onde a mãe preparara um farnel que levava para ali, onde se deitava na cama a ler, ou na mesa a fazer os trabalhos que a professora lhe mandara. Era essa a sua rotina. Nunca acontecera fazê-lo por outra ordem: era escola, casa e depois, o seu cantinho. E era tão feliz assim.

 

Não tinha passado muito tempo, embora não soubesse precisar quanto. Um dia a professora sentira umas dores esquisitas (segundo a diretora) e tivera de ir ao médico, pelo que todos foram mandados para casa. Como era tão cedo, decidiu passar primeiro pela sua casinha e deixar ali a mochila, para depois, perto da hora a que era habitual, ir a casa buscar o lanche. Aproximou-se e os vidros agora transparentes mostraram o que acabou gravado a ferro e fogo na sua memória. Corpos nus, pernas e braços num emaranhado sobre aquela cama onde se deitava para ler os livros de aventuras que trazia da escola e tanto gostava. Lençóis revolvidos, manta de retalhos no chão, o rosto do pai e outro que nunca vira, ou que talvez conhecesse mas que não conseguia registar no seu cérebro assoberbado com tamanha sobrecarga de informação. Regressou a casa lentamente, cabisbaixo e, quando a mãe lhe perguntou o que acontecera, não a conseguiu olhar nos olhos quando balbuciou "nada".

 

Durante uns dias não foi ao que fora seu espaço, já que não o sentia como tal. Vagueou pelos pinhais em redor, sentou-se nas pedras de xisto, atirou seixos ao ribeiro, quase seco, com força, comeu sentado na caruma que caia das árvores sob as quais ficava, deambulou sem dizer onde estivera. 

 

Um dia, no regresso a casa, encontrou a mãe à janela, olhar vazio fixo no horizonte, o rosto molhado. À pergunta sobre o que tinha, a mãe afagara-lhe o rosto e dissera-lhe baixinho agora és o homem da casa, num sorriso triste. Correu porta fora e confirmou que a carrinha não se encontrava sobre o telheiro. 

 

Nos dias seguintes não foi à escola, e a mãe pareceu nem notar. A raiva agigantava-se-lhe no peito, a mente pregava-lhe partidas, se tivesses confrontado o teu pai, se não tivesses falado na casa, se, se... numa voragem de pensamentos sem resposta que o consumia.

 

Foi então que naquela noite pegara na lata de gasóleo do trator e no isqueiro de prata que o pai esquecera e se dirigira ao casebre que marcara como raiz da sua infelicidade. Ali, ensopou o colchão como combustível, espalhando o resto pelo chão, paredes, pelas cortinas que a mãe tinha costurado. Junto à porta abriu o isqueiro, fez rodar a pedra, e surgir a chama. Atirou-o com raiva para cima da cama, e saiu. Caminhou até à árvore solitária e sentou-se.

 

Projetou com força uma pedra que embateu num cepo escuro, restos de uma árvore morta. Encontrava-se já junto a casa, atravessou o pátio e entrou. Não se preocupou em acender a luz. Repetiu o caminho que os seus passos decoraram, da porta à janela de onde a mãe não saía desde aquele dia, onde era possível divisar a sua silhueta. Aproximou-se, beijou-lhe a testa e afagou-lhe o rosto em seguida. Olhou as mãos prostradas no seu colo, enquanto se sentava no chão à sua frente, e encostou o seu rosto nestas. A mãe moveu-se um pouco como que a despertar, colocou uma mão sobre a sua cabeça e brincou com os caracóis do cabelo. Ele não se moveu, receando quebrar a magia do momento. E quando ouviu a voz da mãe, que não soava há já tantos dias, dizer a noite caiu, temos de pensar em ir deitar, amanhã temos coisas para fazer, grossas lágrimas saltaram dos seus olhos e rolaram pelas suas faces, no reconhecimento de uma esperança que julgava perdida. E quando se dirigiu, mãe pelo braço, em direção aos quartos, reconheceu que conquanto fosse agora o homem da casa, nunca deixaria de ser o menino de sua mãe.

 

- Também deste desafio:

Conforto

Acalanto da memória

 

Neste desafio participo eu, a Concha, A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor,  a Gorduchita, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, a Cristina Aveiro, a bii yue,  José da Xã e o João-Afonso Machado.

Todas as quartas feiras e durante 12 semanas publicaremos um texto novo inspirado nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada uma, ou através da tag "Desafio Caixa de lápis de Cor". Ou então, junta-te a nós ;)

 

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