Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Porque Eu Posso 2.0

... e 'mái nada!

Porque Eu Posso 2.0

... e 'mái nada!

24 Mar, 2021

Real

Desafio caixa de lápis de cor

pexels-photo-2967156aa.jpeg

 

Mal terminou o sexto ano, ouviu o pai dizer que não ia continuar a estudar porque tinha de ajudar nas despesas da casa. Não adiantou o professor ir até à sua casa a seguir à missa; naquele domingo o pai escutara-o, e dissera-lhe que Conceição tinha que se fazer uma mulher, não eram os estudos que lhe iam encher a barriga. O professor ouviu e ainda olhou para a mãe da rapariga, em busca de algum sinal de compreensão, mas Maria Anunciada não tirou os olhos do chão durante toda a conversa, enrolando a ponta do avental. Quando o patriarca se levantou da cadeira colocou a boina na cabeça e se dirigiu para a porta, o professor percebeu que a conversa tinha sido dada por terminada e saiu, frustrado, decidindo que era melhor não continuar a encher a cabeça de Conceição com o que não passaria de sonhos.

 

E foi assim, a pequena de treze anos acabou por ficar em casa a cuidar dos irmãos, por forma que a mãe pudesse ir para o campo, trabalhar ao lado do pai. Conceição fez-se então mulher cedo, com a obrigação de cuidar das gémeas e do bebé pequeno, acumulando as tarefas domésticas e tendo sempre o jantar na mesa a horas dos pais voltarem das fazendas. 

 

Os anos passaram, e foi a vez das irmãs deixarem a escola para a substituir, enquanto o pai lhe vaticinava o passo seguinte: a rapariga, agora com dezoito anos iria trabalhar numa quinta, longe de casa. Chorou silenciosamente na sua cama estreita, assustada com o futuro incógnito. Podia jurar que na manhã seguinte sentiu que a mão da mãe estava pouco firme quando esta lhe entregou o farnel para a viagem. Procurou nos seus olhos um sinal, a confirmação de que ia tudo correr bem, mas esta afastara-se sem uma palavra mal o pai tinha entrado na cozinha e a saudara com um ríspido só espero que sejas mais despachada a trabalhar lá na quinta! Livra-te de me virem com queixas, tu não me envergonhes, que te arrependes... a condizer com o brilho gelado dos seus olhos. Conceição engoliu as lágrimas que ameaçavam sair e seguiu atrás do pai até à velha carrinha sem dizer uma palavra.

 

E era assim que se encontrava agora ali, na camarata onde dormiam quinze mulheres de diversas idades. Levantavam-se com o nascer do sol, tomavam um mata bicho de sopas de broa com café, e seguiam para o campo, onde faziam as tarefas que lhes eram atribuídas pelo capataz, um homem de meia idade baixo e mal encarado. Conceição não gostava dele: mesmo de costas conseguia sentir o seu olhar cravado nela e isso deixava-a tão desconfortável... e não era só ela que o achava estranho: as outras mulheres, mais velhas, trocavam olhares cheios de significados que não conseguia adivinhar, de cada vez que ele se aproximava. 

 

Conceição não era uma rapariga bonita, mas tinha em si a força da juventude e o ar do campo tinha-lhe tisnado a pele de um tom saudável. Silva não conseguia descolar os olhos dela, e tantas vezes quando ela se endireitava e limpava a transpiração com o pano que trazia consigo, estreitava os olhos divisando as suas curvas em contra luz, o corpo firme e bem delineado. E quando ela levava o cantil aos lábios para matar a sede, deixava correr a imaginação solta por caminhos que, tinha a certeza, ela não conhecia - e isso ainda lhe gerava maior perturbação. Passava a língua pelos lábios gulosos e mantinha-a debaixo de olho durante a maior parte do dia.

 

E naquela manhã ela tinha sido chamada a apresentar-se ao capataz. Silva mandou-a sentar-se na cadeira e apressou-se a sair de trás da secretária, quando ela entrou. Foi-lhe dizendo que o seu trabalho lhe agradava e que a apanha da azeitona estava a poucas semanas de distância e era chegada a hora dele escolher quais eram as mulheres que fariam parte do grupo que iria para o olival. Disse-lhe que o trabalho lhe renderia mais uns euros por dia, ouviste, rapariga? Gostavas de ir apanhar as azeitonas verdes, rijas no olival, perguntou enquanto se aproximava. A rapariga aquiesceu, olhos pregados no chão e ele disse-lhe que isso se podia arranjar... ela só tinha de ser amiga, que ele ia cuidar que corresse tudo bem e o seu pai recebesse uma jorna maior e até lhe digo que a sua filha trabalha que se farta, que se deve orgulhar dela. Conceição levantou os olhos, esperançosa de que o seu pai pudesse sentir que a sua filha era uma bênção, e encontrou dois olhos brilhantes de expetativa. Antes de poder fazer um movimento, Silva aproximou-se e agarrou-a, puxando-a contra si, as mãos nas suas nádegas apertando, apalpando, enquanto a sua língua lhe molhava o pescoço ao mesmo tempo que segredava ao seu ouvido coisas que ela não entendia. Chocada, nauseada, Conceição só conseguiu balbuciar não... uma e outra vez, e quando o homem lhe subiu a blusa soltando uma exclamação ante a visão dos seus seios leitosos que contrastavam com a sua tez escurecida pelo sol, a rapariga empurrou-o e saltou para trás baixando a blusa, começando a correr em direção à porta. Poucos passos deu, quando se sentiu a ser puxada pelo pulso. Silva, olhar febril disse, sem mais delongas vais ficar, sim senão chamo o teu o pai para te levar para casa, e digo-lhe, a ele e às tuas camaradas todas, que vieste aqui e te ofereceste a mim para não teres de trabalhar como as outras, grande preguiçosa... Conceição agitou a cabeça negativamente, sem conseguir acreditar no que ouvia. Julgas que não, minha puta? Desafia-me e vais ver...

 

O que se passou a seguir era uma névoa na sua mente - mas não suficientemente espessa. Lembrava-se dos cheiros, da sua transpiração, do chão a arranhar-lhe os joelhos, do sabor a outra pele na sua boca. Saiu de lá tropega do choque que tudo tinha sido, com a voz de Silva nos seus ouvidos ainda te vou fazer gostar, ouviste? Há tanto que não sabes e te vou mostrar... 

 

Conceição perdeu o brilho no olhar, perdeu o viço e se nos primeiros dias as lágrimas lhe molharam o rosto, depressa secaram. A ameaça de perder o trabalho, de o seu pai ser chamado para a levar faziam-na ouvir de novo Livra-te de me virem com queixas, tu não me envergonhes, que te arrependes... 

 

 

A todas as Conceições que ainda hoje, em 2021, têm de se sujeitar aos Silvas desta vida.

Para elas, o movimento #Meetoo não existe.

 

- Também deste desafio:

Inesquecível

Rosa

Narciso

Ela

Tua

Imortal

O menino de sua mãe

Acalanto da memória

Conforto

 

Às quartas feiras o #GrupoDosLápisDeCor, de que fazemos parte eu, a Olga, a Marquesa a Concha, A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, a Cristina Aveiro, a bii yue,  José da Xã e o João-Afonso Machado  publica textos novos inspirados nas cores dos lápis da caixa que dá nome ao desafio. Acompanha-nos nos blogues de cada um, ou através da tag Desafio Caixa de lápis de Cor. 

 

 

41 comentários

Comentar post

Pág. 1/2