Reminiscências
Desafio arte e inspiração - semana #4
A vida é um circulo curioso. Bem sei que associar a vida a essa forma geométrica, de original não tem nada, mas não há volta a dar, e com trocadilhos destes acho que era melhor ir dormir mais dez minutos e recomeçar o dia, assim como reiniciar um computador, só que como não sou máquina, ao invés fico aqui em frente ao espelho e perscruto o meu rosto devagar, com as pontas dos dedos, com a leveza que só as penas têm, como aquelas que enfeitam o chapéu que levei ao casamento da prima Teresa, vai para cima de um ror de anos, e que se lhe pegar agora faz parecer que está a nevar, o que deixa as ditas penas ainda mais depenadas...
Mas dizia eu que toco o meu rosto com as pontas dos dedos, levemente, e vou sentindo cada uma das marcas que mais não são que o mapa da minha vida. Aqui estão as marcas dos sorrisos despejados em jorros sobre o berço dos meus rebentos recém nascidos e depois mais crescidos, cada vez mais crescidos, e as linhas a ganhar raízes debaixo da pele e a deixar marcada a felicidade acima de qualquer dúvida.
Na testa, linhas horizontais como as ondas que tanto amei toda a minha vida, comprovam as dúvidas, os espantos, as surpresas, que me faziam levantar o sobrolho, às vezes apertar os olhos com força enquanto as lágrimas caíam, os amigos que partiam, os familiares que desapareciam. As dores de crescimento - até hoje, que já sou tão crescida que se isso se manifestasse em centímetros seria preciso um escadote com mesmo muitos degraus para me dar um beijo, mas um beijo doce, leve e suave, nada como os beijos da tia Júlia e da tia Matilde, que cheiravam a pó de talco e naftalina, e me apertavam tanto as bochechas, ó mãe fá-las parar, e me deixavam sempre borrada com aqueles batons vermelho sangue ou fucsia de fugir, que não saiam nem esfregando bem a cara com a toalha, aquela com a barra de crochet com que a avó havia aplicado, tanta ternura e delicadeza numa toalha turca agora toda mascarrada com o betume labial das chatas das tias, benza-me deus.
Mas todo o meu corpo, não apenas o rosto, são a minha história; a pele dos braços, agora flácida, fininha e tão alva, braços que levantaram filhos, sobrinhos, que soergueram os pais quando eles já não o conseguiam fazer sozinhos... que pintou a casa, a minha primeira casa, até ficarem tão doridos, mas só até olhar em volta e ver o trabalho feito, sentindo desenhar-me um sorriso de orelha a orelha. Depois dirigia-me para a banheira onde me deixava ficar de molho com os braços submersos, o calor a aliviar os músculos cansados, semi adormecida, embalada pelo calor, os mamilos a espreitar acima da linha água, pequenos e rosados, mamas firmes e virgens de amamentar, com uma pele tão suave ao tato...
Retiro a camisa com que dormi e olho o meu reflexo. Sorrio à memória da firmeza das carnes que se deixaram amaciar pelo tempo, e comprovam a lei do senhor Newton. Passo as mãos na pele das coxas, que agora têm a textura de uma t-shirt pendurada para secar num estendal demasiado cheio, e que já foram firmes e capazes de andar quilómetros, assim o quisessem, os joelhos que fletiam as vezes necessárias sem um queixume. Subo as mãos até às ancas, as ancas que a avó vaticinara como parideiras, profecia certeira, cinco filhos paridos, dois perdidos na guerra do ultramar - se olharem o meu rosto de perto, conseguem ver as marcas carregadas que contam essa passagem da minha vida, mais negra que breu...
Coloco ambas as mãos sobre o meu ventre, agraciado com o milagre de desenvolver e carregar vida, vida dada com tanta dor e felicidade.
Olho o meu corpo inteiro, confundo-me por momentos, porque agora vou-me confundindo de quando em vez com as coisas mais comezinhas que dantes sabia tão bem e sem dúvidas, e não consigo garantir se o corpo que vejo é este, o de hoje, se o corpo que já tive, que se foi marcando com a passagem da vida. E rio-me, com vontade: não são ambos o mesmo, divididos por umas dezenas de anos e histórias? Volto a vestir a camisa de noite, mesmo a tempo dela entrar na casa de banho, me dar um beijo de bom dia e me dirigir de novo para o quarto, vamos lá avó, por-nos bonitas para o dia que começa.
No desafio Arte e Inspiração, participam Ana D., Ana de Deus, Ana Mestre, bii yue, Bruno Everdosa, Célia, Charneca Em Flor, Cristina Aveiro, Imsilva, João-Afonso Machado, José da Xã, Luísa De Sousa, Maria, Maria Araújo, Mia, Olga, Peixe Frito, Sam ao Luar, SetePartidas
Para referencia, esta foi a obra que serviu de inspiração ao texto desta semana
40 anos, Fátima Mano
Amanhã, aqui, será revelado o quadro para a próxima semana. Não se esqueçam de passar por cá e deixar a vossa primeira palavra...